Wednesday, June 7, 2017

Carmen Miranda at 'O Malho' - 5 April 1934

Weekly magazine 'O Malho' journalist Francisco Galvão visits singer Carmen Miranda at her home next to Santa Thereza, in Rio de Janeiro. He talks to her about her recent travels to Pernambuco, Bahia, Argentina and her incursions into the slums of Rio de Janeiro to listen to what some in the upper classes would call 'Negroid music'. 

Carmen is open about everything including her recent visit to Morro do Salgueiro to listen to Black men like Boruca and Gargalhada sing their latest samba songs. Mr. Galvão asks Carmen whether she wasn't afraid to go up to shanty towns. She retorts saying those maligned people are humble and hard working people who congregate on Saturdays to sing & make up rhyme... just like the birds'. 


pequena que realizou o milagre que HitlerMussolini Roosevelt se esforçam por conseguir: ser popular exercendo uma dictadura – a dictadura do samba.


O cartaz na intimidade: Carmen
por Francisco Galvão para 'O Malho' 5 April 1934.


Carmen Miranda! A cidade acclama o seu nome, dos subúrbios mais distantes aos bairros mais nobres. Em toda a parte. Quando canta, no radio, os ‘escuchas’, não querem outra vida, só rodam o número da estação, quando ella sahe do microphone.   

Eu creio mesmo que há um passaro escondido na sua garganta. Porque, elástica, cheia de nervos, com aquella garganta maravilhosa, a rainha dos sambas, ‘abafa a banca’ se se faz ouvir em qualquer coisa de seu repertorio: seja no ‘Tão grande... e tão bobo’, como no ‘Sahe poeira do chão’.

Entrevistal-a, muita gente tem feito. Há phrases inteiras que ella jámais proferiu. Mas ninguém pegou ainda de geito, a alma de Carmen, que é uma creança grande, segurou a sua sensibilidade, estranhamente perturbadora, para mostrar ao publico. Seria preciso conviver um pouco naquella casa magnifica, bem perto de Santa Thereza, onde ella vive com sua família, rodeada de arvores, entre gansos e pássaros, para se comprehender, a rigor,  a alma da artista que afinal chegou a ser um ídolo do publico.

Ao subir a ladeira enorme, que me levaria, pela primeira vez, ‘chez’ Carmen Miranda, imaginei, para logo, conseguir da artista alguma coisa de emotivo e de novo.

No jardim, estendida preguiçosamente numa rêde de tucum, a artista embalava-se, quando chegamos, acariciando a cabeça de um cão negro que trazia meiguices profundas nos olhos dormentes.

Era verão. As folhas boliam com indolência, e a gente respirava um ar puro no seu studio, onde bonecas japonezas sorriam e Budhas authenticos, gordíssimos, sonhavam nos ‘étagères’.

Moveis  modernos e raros, encommendados ao capricho esthetico da dictadora do Samba. Aurora Miranda, convalescente, ali estava com aquelles seus olhos parados, como dois igapós amazônicos.

- Carmen, conte-me a sua impressão de viagem.

- Consegui-a, viajando para o Norte, conhecendo o Brasil das jangadas, dos feitiços, dos reisados, das mandingas, dos paes de santos. Acredita que eu trouxe de Pernambuco uma impressão duradoura, eterna. Cidade linda, com aquella praia bonita da Boa Viagem, que copia acintosamente Copacabana; as pontes metallicas, onde a gente passa e vê os saveiros, com os mastaréus, molhados, tantos com o perfume das vagas.  

O Brum, Casa Amarella, Olinda com aquelle cheiro do passado, com os sinos batendo emotivos.

Você não pode imaginar como eu gostei do Recife!

-  E da Bahia?

- Ah, meu caro, a Bahia do Senhor do Bomfim, é um encanto. Gente boa, como a de Pernambuco. Olhe, eu continuo a pensar que o Brasil, o Brasil mesmo, esse Brasil que arranca, nas caatingas, em cima de um potro bravo e se perde no infinito, nas vaquejadas; e se joga, às cégas, sem bussola, guiando-se pellas marés e pellas estrellas, numa jangada, enraivecendo o mar, está ali bem fixo. 


- Gosta assim de viajar?

- Penso como João do Rio, a viagem é o único prazer que os deuses deixaram, por esquecimento, na terra. A gente viajando, no deck de um transatlântico, vendo cidades novas, olhando o mar longínquo, não muda apenas, de clima, muda também de alma.

Porque, longe do borburinho das metrópoles, em cima de um tombadilho, a alma da gente como se sente mais socegada, muito mais humana, muito mais doce.

- Qual foi a sua impressão da Argentina?

- Magnifica. Buenos Aires é linda. Cantei lá, como você sabe, com êxito.

A platéa  platina é fina e culta. Sabe afferir dos valores. Ou os consagra na estréa, ou os néga. Vae assistir um espectaculo para julgar o mérito do artista.

- E qual é a sua opinião de nossa platéa?

- A nossa é de uma camaradagem absoluta. Acredito que não haja no mundo inteiro uma platéa tão indulgente. Não há quem desencoraje uma artista, com medo de magoal-a. Gente boa, a nossa!

- Conte-nos da sua temporada de Carnaval no Gloria.

- Fui felicíssima. O meu publico compareceu na exacta. Apenas senti a falta da presença de Aurora, que foi victma, como todo o mundo sabe, de um accidente marítimo.  Mas o meu publico, a ‘minha gente’ é tão amável que me perdoou a falta de minha irmã. Com o Bando da Lua, e o (João) Petra de Barros, tivemos noites e tardes memoráveis.

Alegre como um raio de sol; sonora, como um guizo, como uma pandeireta agitada por uma ‘maja’ formosa.

- Por que você prefere o samba no seu repertório?

- Naturalmente porque encontro, nelle, a musica da nossa gente simples e boa. Dor e saudade de um povo. O malandro põe no samba, sua própria alma, toda a sua emoção.

Outro dia, seguindo o seu alvitre, subi o morro. Uma noite linda, como se as estrellas fossem lyrios que se despetalassem no alto.

Céo que era uma maravilha de estrellas.

Subi as ladeiras escorregadias do Salgueiro, fui andando até assistir a batucada e a roda de samba. Lá encontrei o Boruca e o Gargalhada, dois sambistas de fama. A Escola Azul e Branco, dando a nota.

Que poeta esse Gargalhada, ouça: ‘Eu venho derramando lágrimas, não posso resistir esta separação, quero chorar e não posso, tenho remorso, porque eu não tenho razão.

- E, afinal, que me diz do Morro: teve medo?

- De que? Ali mora uma gente laboriosa e humilde que se diverte aos sabbados, cantando e fazendo versos. Como os pássaros.

Embora não seja ‘peca’, estando assim com ‘os caminhos abertos’, porque o ‘meu Santo é bom e forte’, subi, sem o menor temor.

Os bambas ali hoje em dia, são bem outros: não rasgam mais cartas de valentes, vêm, para a praça Onze, cantar os seus sambas magníficos, durante o Carnaval.


Assim falou S.M., a rainha do Samba, sem saber que estava sendo entrevistada.   

'O Malho' 24 May 1934.
'Na batucada da vida' written by Ary Barroso & Luiz Peixoto.

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